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Artigo postado dia 19/04/2021

Por: André Ricardo G. Borges

Artigo postado dia 19/04/2021

Por: André Ricardo G. Borges

Até Quando Você Vai Assistir ao Massacre da Janela?

Até Quando Você Vai Assistir ao Massacre da Janela?

O Brasil vive um clima de paralisia diante do genocídio sendo tocado por Bolsonaro e seus aliados ou cúmplices em todas as instituições da República. Quer dizer, até há uma parte de pessoas mobilizadas e ocupando as ruas em alguns momentos: os apoiadores de Bolsonaro. Os demais, e aí se destaque com todas as letras os partidos progressistas, movimentos sociais e sindicatos, estes se limitam a postagens de redes sociais, a participar de lives também em redes sociais, a organizar panelaços nas janelas de casa, notas de repúdio, ações judiciais. Isoladamente, alguns poucos ativistas e militantes realizam pequenos protestos com poucas pessoas, são mais atos simbólicos. Fez-se, ainda, uma ou duas carreatas com alguma consistência, apesar de todas as limitações de alcance e corte de classe deste tipo de manifestação.

Não pretendo discutir neste artigo as razões estruturais profundas que tornam tão difícil mobilizar a população, mais precisamente a classe trabalhadora, para a atividade política e o enfrentamento do aparato de repressão estatal no Brasil. Para isto, seria necessário um livro inteiro, no mínimo. Pretendo apenas discutir a lógica por trás desta decisão das organizações da classe trabalhadora dos diversos espectros políticos, da esquerda moderada à ultraesquerda, de apenas realizar atividades virtuais e as implicações disto na situação do país e comparar a experiência brasileira com o que ocorre em outros países.

Inicialmente, o que posso dizer é que não chegamos a este quadro de forma espontânea. Em contraponto à postura negacionista, perversa, mesquinha e genocida do governo Bolsonaro desde o primeiro dia de quarentena, ainda em março de 2020, o campo progressista se viu empurrado para uma rigorosa posição de intransigente defesa da vida através dos protocolos de saúde indicados pela OMS a todos os países, visando à contenção da pandemia. E isto faz muito sentido. Diante da postura abertamente irresponsável e de sabotagem do governo federal, o campo progressista precisou ser a voz da razão e da ciência perante a sociedade.

Porém, como tudo na vida, e principalmente nas complexas questões sociais e políticas, estas não podem ser compreendidas ou enfrentadas com base numa lógica  simplória, binária ou monocromática, em que existe apenas o preto e o branco. Existem nuances, tons de cinza, e existem outras cores também, sobretudo o vermelho do sangue nos pulmões que sufoca as vítimas do Covid-19. Na lógica, existem as premissas e as conclusões, mas isso não significa dizer que toda premissa leva a uma única conclusão, ou que cada conclusão é resultado de uma única premissa. Mas é exatamente assim que raciocina quem defende o seguinte postulado:

Se eu defendo as medidas sanitárias para o enfrentamento da pandemia, inclusas aí a necessidade de manter isolamento social e evitar aglomeração, então não posso protestar contra um governo que pratica um projeto de assassinato em massa de uma forma que provoque a minha saída do isolamento social e produza aglomeração.”

Portanto, sair de casa com este desiderato seria um gesto contraditório e, portanto, inválido. Em resumo, teríamos um dilema que, como é próprio dos dilemas, seria uma situação insolúvel. À primeira vista, isto parece fazer muito sentido. De fato, não seria fácil de explicar que para se combater uma ação eu precise exatamente praticar a mesma ação ou uma muito parecida. Ou não? Acontece que, num exame mais criterioso do assunto, percebe-se que a questão não é tão simples assim. Isto porque existem as regras e as exceções às regras. Existem as situações normais e existem as excepcionais.

No caso em questão, tem-se que o isolamento social deve ser a regra, mas cabem as exceções que são as necessidades essenciais e as emergenciais. As pessoas devem, em regra, ficar em casa, mas podem sair para trabalhar (quando for impraticável fazer isto de casa), ir à farmácia, ao supermercado ou se exercitar ao ar livre. Estas seriam as exceções essenciais. Podem sair também para atendimento médico ou ortodôntico inadiável para si ou para outrem. Estas seriam as emergenciais.

Agora já começa a ficar mais claro que a tal regra de ficar em casa não é tão inflexível assim. Tudo se restringe a uma questão de legitimidade das razões de sair do isolamento. Vamos ser sinceros. À exceção das pessoas com graves comorbidades, as demais estão saindo de casa com alguma frequência, com mais ou menos cuidados. Há pessoas nas ruas e seria muito leviano apontar todas elas como bolsonaristas, irresponsáveis e insensatas. Cabe frisar que a maioria da classe trabalhadora não tem a opção de ficar em casa e tem que se aglomerar para ir e retornar do trabalho. Então resta saber o que é essencial e o que é emergencial para cada um.

Já imaginou um soldado ou um guerrilheiro recusando a ordem de seu comandante de avançar contra o inimigo, alegando que tal gesto colocaria sua vida em risco? Ou um policial que se recuse a enfrentar um bandido armado pela mesma razão? Ou um bombeiro que se recuse a debelar um incêndio pelo mesmo motivo? Não faltam exemplos em situação análoga à qual sugiro a devida reflexão. Dá-se a isto no direito o nome de “Dever Legal de Enfrentar o Perigo” que obriga certos profissionais a pôr em risco sua integridade física e mesmo sua vida para cumprir os regramentos e determinações atinentes a seu ofício. Esta é a palavra-chave: senso de dever. Este senso de dever, na situação em análise, não seria legal, mas moral, político e ideológico. Um compromisso de vida com um conjunto de ideais. E ninguém pode se dizer um ativista social ou um militante político, se não age movido pelos seus ideais.

É isto que separa alguém que considera a luta sindical apenas um espaço de mediação de interesses financeiros e corporativos, de relações e de condições de trabalho, de quem enxerga como algo maior, como uma instância da cidadania coletiva, uma trincheira de luta do povo, da classe trabalhadora. Quem enxerga o sindicato da primeira forma, eu considero natural que coloque a si mesmo como prioridade. Os demais, não. A pergunta que cada um deve fazer é se lutar contra um genocídio em andamento é essencial ou não, se é emergencial ou não. Se esta luta precisa ser feita agora mesmo ou se ela pode esperar por mais meses ou anos, enquanto milhares de pessoas morrem, dentre elas seus amigos, parentes, colegas e vizinhos, e enquanto você alardeia sua pretensa superioridade moral e sua sensatez.

Não significa dizer que em nome desses ideais, deva-se colocar a si ou aos seus em risco, inadvertidamente. Ninguém está pedindo isto. Espera-se que cada um atue segundo os mesmos parâmetros de segurança que utiliza quando executa suas próprias atividades essenciais ou emergenciais. É assim que deve ser vista a atividade de luta política nas ruas: como mais uma atividade essencial ou emergencial. Se a pessoa possui comorbidades graves, ninguém espera que ela engorde as estatísticas de mortos às próprias custas. Cada um sabe os seus limites e deve ter bastante consciência de quais são suas reais motivações. Além disso, se sair à rua representa um risco tão letal para algumas pessoas, nada impede que elas possam contribuir de outra forma, seja divulgando a atividade, levantando material e provimentos nos casos de doações aos mais vulneráveis, etc. sem abrir mão de suas atividades de militância virtual.

Passando agora para as implicações políticas da questão da luta popular nas ruas, pode-se dizer que não é possível analisar completamente uma escolha política, e esta decisão de ficar em casa até a situação melhorar é uma decisão essencialmente política, desprezando as consequências concretas disto, sua eficácia social e os exemplos históricos. Neste último ponto, não estou a sugerir uma digressão no tempo muito severa. Sugiro apenas que se observe o que acontece em outros países, muitos daqueles que até fazem fronteira com o Brasil, há um ano ou mesmo há uma semana. Não vão faltar bons exemplos.

Destaco, a título de ilustração, os seguintes episódios recentes: o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos, as lutas populares de rua no Chile, na Bolívia e no Paraguai, este último ocorrido há cerca de duas semanas apenas. O ponto que une todos esses movimentos é que todos eles se deram em plena pandemia do Covid-19 e que todos foram bem-sucedidos no propósito a que se pretendiam. Nos EUA, as manifestações se espalharam por todo o país com consequências violentas, causando grandes danos e perda de vidas, mas resultaram em mudanças nas leis penais, no regime de segurança pública, sem falar que foram decisivas para influenciar no processo eleitoral e tirar do poder a maior força da extrema- direita no mundo. No Chile, a população rebelada nas ruas conseguiu arrancar uma nova assembleia constituinte que pretende jogar na lata de lixo da História o legado pinochetista.

Na Bolívia, foram mais além. A mobilização popular, principalmente o movimento indígena, conseguiu derrubar um golpe de estado, convocar novas eleições, reestabelecer a democracia, reconduzindo a Esquerda ao poder e, agora, está levando os golpistas à prisão. No Paraguai, a população foi às ruas, cercou o palácio presidencial, conseguiu derrubar todo o quadro do ministério da saúde e quase conquistou o impeachment do atual presidente que agora se vê obrigado a empreender mais esforços para conseguir vacinas para os paraguaios. Não há relatos de que nenhum destes processos políticos tenha provocado uma alta nos números da pandemia, muito menos tenham sido motivo de incremento do número de mortes ou o surgimento de novas cepas mais perigosas.

Enquanto isto, no Brasil, os movimentos sociais, partidos progressistas e sindicatos estão perdendo uma oportunidade de educar politicamente as massas e de sinalizar para a população de que lado da História estão. A luta se limita ao ativismo de redes e à atuação judicial e parlamentar. Todo mundo em casa, muito seguro, muito sensato, muito racional. Quer dizer, em casa mesmo só aqueles cuja atividade laboral permite o home office. Os demais, principalmente os mais pobres, estão no transporte público lotado em busca do pão de cada dia.

E o quanto esta luta virtual ou institucional foi de fato eficaz? Conseguiu-se aprovar auxílios emergenciais por um tempo, mas que agora não serão capazes de manter os vulneráveis em casa, e a compra absolutamente tardia de vacinas, obstaculizada pela ação ativa do governo federal. O que fica claro é que esses meios de luta não foram capazes de impedir o Brasil de se tornar o epicentro da pandemia, num cenário catastrófico de colapso hospitalar e mais ainda um funerário que se avizinha. O país agora tem uma cepa nacional para chamar de sua, muito mais infecciosa, contagiosa e, portanto, muito mais mortal. Os referenciais de grupo de risco estão praticamente se desmanchando no ar. Hoje o Brasil é o país em que mais morre gente no mundo pela Covid-19, numa taxa tão escandalosamente alta que é maior que os 5 países seguintes nessa lista macabra juntos.

E o que os ativistas e militantes espalhados pelo país estão fazendo quando restringem sua atuação aos meios digitais? Na prática, estão apenas tirando água com um balde de um navio que está afundando. Enquanto a atuação individual se vê emaranhada na teia de algoritmos dos aplicativos que limitam o alcance a pouquíssimas pessoas, há toda uma estrutura profissional com grandes financiadores daqui e de fora do Brasil, impulsionando massivas quantidades de fake news, tumultuando a aplicação das regras sanitárias e produzindo milhares de mortos todos os dias.

Outra coisa que estes ativistas e militantes estão fazendo é ensinar a classe trabalhadora que a rua não é um lugar para se lutar de fato, mesmo quando as condições são desesperadoras. Abandonadas à própria sorte e sem referências, as classes populares dobrarão a aposta na via institucional, nos acordos por cima, na conciliação de classes e no seu grande instrumento de amestramento dos oprimidos: O PROCESSO ELEITORAL. Perdidos, esses ativistas e militantes que se consideram tão radicais e revolucionários vão eleger, com muita sorte, aqueles que mais odeiam, mais ainda que aqueles que deveriam ser seus inimigos em tese: os representantes dos partidos moderados, os reformistas. É preciso dizer nomes?

O que parece é que está todo mundo esperando que caia uma grande ficha em todos os segmentos sociais, de que haja uma grande comoção que produza uma concertação nacional para que todos de mãos dadas juntem-se como num passe de mágica para superar esse momento trágico, apesar de todas as evidências em sentido contrário. Enquanto isso, todos os direitos da classe trabalhadora são surrupiados e a conta está chegando pesada no bolso do servidor público. Mas muitos acham que vão poder recuperar todo o estrago feito quando o sol voltar a brilhar e o vírus for só uma lembrança. É bom lembrar que não há nenhum exemplo na história do Brasil de que isto tenha acontecido antes. Direitos perdidos jamais foram recuperados. Ainda é tempo de começar a lutar nas condições que o momento exige. Não podemos é insistir no que se tem feito até aqui. Já deu errado. A estratégia até aqui levada adiante já fracassou. Portanto, é preciso voltar às ruas, respeitando as regras de distanciamento, ser criativos na hora de implementar as atividades, mas ocupar o nosso espaço e dar o nosso recado.

 

*André Ricardo G. Borges é trabalhador da Justiça Federal da Bahia.

 

 

Nota do SINDJUFE-BA

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